Amadas ou odiadas, as Birkenstock já provaram que pertencem ao exigente segmento de luxo. Seja por ‘portas travessas’ ou por uma iminente aquisição.
Transcreva-se quem sabe:
“A fusão das sandálias Birkenstock com a icónica Birkin da Hermès valoriza a marca alemã, mas esta aproximação às marcas de moda de luxo não é de agora. Desde o início da década passada que vários designers têm pegado nas sandálias da discórdia para lhes darem o seu cunho pessoal – em 2020 foi a vez da Maison Valentino, por exemplo. O que neste momento põe a Birkenstock no mapa do luxo são dois acontecimentos distintos, mas que coincidem no tempo. Na mesma semana, em fevereiro, é apresentada a Birkinstock (o ‘i’ em vez do ‘e’ não é gralha) e o fundo de investimento do grupo LVMH está a negociar a compra da marca alemã.”
Alheio a isto não será o protagonismo do calçado confortável durante o confinamento, o que abre uma janela de oportunidade para marcas como a Birkenstock criarem modelos que, sendo confortáveis, tenham a estética e a aura aspiracional dos produtos de luxo. Não é seguindo este raciocínio, porém, que um coletivo de artistas-ativistas decide criar umas Birkenstock feitas com a pele das carteiras Birkin, da Hermès, à revelia de ambas as marcas e capitalizando a semelhança fonética. O polémico coletivo MSCHF, de Brooklyn (Nova Iorque), pega em duas referências de moda opostas e cria uma coleção com base nas sandálias Arizona (as de duas tiras largas, associadas aos ditos ingleses), que pretende dessacralizar o modelo de carteira criado para a atriz Jane Birkin. Que, a propósito, é a carteira (ou mala) mais cara alguma vez vendida em leilão.
O coletivo de artistas e criativos da marca MSCHF desfez carteiras Birkins verdadeiras para criar as Birkinstock.
Para quem não está familiarizado com os MSCHF, eles já são considerados o Banksy da cultura de consumo, com ações de guerrilha contra empresas que diabolizam (como a Amazon e o Facebook) e a destruição de produtos caros para criarem coisas novas (como os Nike com água benta na sola), que depois põem à venda. Agora, a ‘destruição criativa’ do coletivo, acrónimo de ‘miscellaneuous mischief’ (miscelânea de traquinagens), vai para outro patamar. Quatro Birkins verdadeiras em segunda mão (mais umas quantas falsas para criarem o protótipo) – nas quais os MSCHF gastam 122.500 dólares (€101.551), segundo o ‘New York Times’, são estraçalhadas para darem origem às tiras cosidas sobre as solas Birkenstock, igualmente verdadeiras. A apropriação indevida destas marcas é uma questão que ainda não foi levantada por nenhuma das partes, mas certamente dará origem a processos judiciais.
O rapper Future é um dos compradores divulgados, bem como a cantora Kehlani e um colecionador de arte anónimo.
A escolha da Birkin é justificada por ser um símbolo de estatuto que, ao ser destruído e transformado em algo acessível, força as pessoas a questionar o simbolismo dos objetos. Passando da teoria ideológica à prática, as Birkinstock são tudo menos acessíveis. Cada par custa entre 35 mil dólares (€29 mil) e 76 mil dólares (€63 mil) - dependendo do tamanho - e é feito por encomenda até a matéria-prima estar esgotada. O preço e a excentricidade criativa justificam o perfil de alguns dos primeiros compradores já divulgados, como o rapper Future, a cantora Kehlani e um colecionador de arte anónimo. Kylie Jenner tem mais sorte (ou visibilidade planetária) e as Birkinstock foram-lhe oferecidas, apanhando boleia da notoriedade nas redes sociais de uma das irmãs Kardashian. Contas feitas, o espírito anti-sistema deste projeto acaba por beneficiar do próprio sistema, com os seus criadores a revelarem-se exímios no marketing e na comunicação.
Kyle Jenner tem mais sorte (ou visibilidade planetária) e as Birkinstock foram-lhe oferecidas.
Não é por acaso que os MSCHF, mais do que um coletivo artístico, são a marca do momento nas redes sociais, seguindo uma estratégia de apresentação de um novo produto disruptivo, duas segundas-feiras por mês. É fazendo este caminho que elevam agora a fasquia da Birkenstock, mesmo sem a marca alemã se dar como participante na criação. Ainda não está claro, no entanto, se este lançamento poderá ser uma ‘traquinice’ para valorizar a marca alemã, num espírito semelhante ao que levou à subida das ações em Bolsa da GameStop. Na mesma semana em que as Birkinstock são reveladas ao mundo, a Birkenstock deixa ‘transpirar’ a notícia que está a negociar a venda ao L Catterton, fundo de investimento que conta com a participação do LVMH e da própria holding familiar de Bernard Arnault, líder e acionista daquele que é o maior grupo de luxo do mundo.
A apropriação indevida de artigos e a ‘colagem’ a símbolos da Birkenstock e da Hermès certamente darão origem a processos judiciais.
Segundo a Bloomberg, a Birkenstock aponta para uma avaliação da empresa entre €4 mil milhões e €4,5 mil milhões, incluindo a dívida. A L Catterton ainda se encontra em processo de condução dos procedimentos necessários para fechar a proposta, que poderá ser subida face ao ‘fénomeno Birkinstock’. É que associação das sandálias ortopédicas ao coletivo que tem um forte apelo junto dos jovens garante a aproximação a este segmento etário, que é o que mais faz crescer o consumo de luxo. Até à data nenhuma das partes se pronunciou sobre as alegadas negociações e a transação é incerta, estando previsto para os próximos meses um eventual desfecho. Caso a venda se concretize, isso significa a abertura de horizontes para a marca que começa há 247 anos com Johann Birkenstock, um sapateiro de Langen-Bergheim, na Alemanha.
O ponto de partida para o calçado ortopédico acontece com um dos seus descendentes, Konrad Birkenstock, que cria e comercializa as primeiras palmilhas flexíveis, em 1896. A invenção das palmilhas com o molde do pé e espaços para os dedos, que caracterizam as Birkenstock, essa, só se dá em 1930 e decorre de estudos e testes até chegar a um formato que melhor respeite a anatomia e o conforto. O resultado são umas palmilhas forradas a camurça, com espuma de amortecimento, camadas de cortiça, juta e látex, colocadas sobre uma sola de borracha. É a partir desta invenção que a Birkenstock faz a história do calçado ortopédico, vendendo cerca de 24 milhões de pares, em 2019. Dois anos antes já tinha aplicado o conhecimento técnico na criação de uma linha de camas, estrados e colchões, igualmente ortopédicos. Resta saber se os turistas ingleses não irão questionar a derivação luxuosa de um símbolo de conforto despretensioso.”
Catarina Nunes
Jornalista
Garantimos-lhe uma coisa:
Se umas Birkenstock o magoam, é apenas porque comprou o número errado.